Livre_expressao

segunda-feira, outubro 16, 2006

Simone

Ai, como apertava o sapato.
Dava três passos e parava. Encostava-se num muro. Colocava discretamente o calcanhar para fora. Este respirava e latejava um pouquinho, e novamente era sufocado em cima do salto fino. Mais três passos e o mesmo ritual.


- Porra Simone, não vamos chegar nunca desse jeito.
- Vendeu o carro porque quis!
Puta que pariu! Sabia que uma hora ela ia me jogar isso na cara.


- Simone, tira logo essa porra de sapato e se apressa.
- Porra de sapato?? Porra de sapato?? Sabe quanto custou essa “porra de sapato”???
- Simoneeeeeeeeeeeee!!! Eu não tenho o dia inteiro!!
Ela baixou o volume da voz.


- Tá doendo.

Estendi a mão para ela se apoiar em mim.
Conseguimos avançar 5 metros. Ela parou de novo.


- Simone, falta pouco.
Ela me olhou. Olhar fixo. Olhos negros e olhar fixo.
- Não quero ir.
Sabia que tinha alguma coisa. Não era só o sapato que estava apertando.
- Como???
- Não quero ir.
- Mas foi você que insistiu nessa porra de história!! Teus pais estão lá esperando.
- Mas não quero mais.
- Como não quer mais?? Não quer mais o que, exatamente?
- Não quero mais nada disso. Nem casamento, nem cerimônia, nem juiz, nem você acordando do meu lado de cara amassada! Nem estes sapatos eu quero mais!!


Atirou longe o scarpin.

- Ce tá louca?
- Não quero! Pronto, falei. Não queeeeeeero!!!
- Simone?!
- Chega, Roberto.
- Mas você...
-Tá, mas mudei de idéia. Não quero mais.
- O que ta acontecendo, Simone?
- Ai Roberto...você é tão...tão chato... tão mal humorado... tão...tão duro! Por que você foi vender a merda do carro bem antes do casamento?
- Simone, não viaja! Que papo é esse? Eu vendi a porra do carro pra pagar a porra do juiz para a porra do casamento!!


Ela olhou para o horizonte. Sei lá que porra de horizonte tinha pra olhar, mas olhou longe com cara de exausta.

- Avisa meus pais que depois eu ligo para eles.
- Quê???


Atravessou a rua correndo, descalça, para dar tempo de pegar o primeiro ônibus que vinha vindo. Eu não vi para onde ia o ônibus, e ela certamente também não viu.

Me deixou à rua deserta. Eu fiquei pensando ainda por uns tantos segundos. Minutos, talvez. Horas, ou anos.

Recolhi os sapatos, como na porra de um conto de fadas.
Olhei o horizonte. Como é triste o horizonte visto de uma cidade grande.


Ariadne Catanzaro