Livre_expressao

sábado, julho 07, 2007

O Cheiro do Ralo: Cinema e Psicanálise

por Sérgio Telles (achei na internet)


Baseado num livro de Lourenço Mutarelli e roteiro de Marçal Aquino, o filme de Dhalia ganhou vários prêmios nacionais e internacionais, e tem recebido uma boa atenção do público.


O protagonista do filme tem o mesmo nome do autor, Lourenço. Ele é dono de uma loja de penhores, onde as pessoas necessitadas de dinheiro vêm vender seus objetos, muitos deles cheios de historias e lembranças pessoais. Ao receber seus clientes, Lourenço sempre explica que o mau cheiro que eventualmente possam sentir decorre de um ralo entupido em seu banheiro, não vem dele mesmo.


Lourenço desiste na véspera de seu casamento, alegando não amar ninguém, nem mesmo sua mãe, a quem a noiva perplexa tenta recorrer de sua decisão. O mundo de Lourenço reduz-se a seu ambiente de trabalho, que mais parece um esquálido depósito de lixo, um amontoado de objetos velhos, e seu apartamento, também inóspito. Passa a se interessar pela garçonete do bar onde faz seus lanches. Ou melhor, pelas nádegas desta garçonete.Lourenço tem uma atitude sádica em relação àqueles que o procuram. Comprando ou não o que eles trazem, ele sempre os humilha e espezinha, avilta e rebaixa, fazendo-os rastejar e implorar, desprezando seus objetos, mais ainda ao saber que eles contem histórias afetivas.


O cheiro do ralo, que tanto preocupa Lourenço, é uma óbvia metáfora de sua culpa. É um sintoma de sua consciência pesada pelos ataques sádicos destrutivos que faz a todos que o procuram, pela forma desrespeitosa e desumana com que os trata. Mas, por outro lado, o cheiro do ralo evoca também o intenso interesse erótico despertado pelas nádegas da garçonete, o "ralo" anal. Assim, para Lourenço, o cheiro do ralo representa o retorno do reprimido, a evidência da culpa por sua agressividade.


Por este motivo, tenta inutilmente tapá-lo, cobri-lo de cimento, o que colocaria em risco todo o edifício, como é advertido pelos pedreiros. Mas também o cheiro do ralo é uma marca de seu erotismo. Estes elementos remetem de imediato o personagem a uma caracterização típica da fixação anal tal como descrita por Freud.


Na verdade, as atitudes e comportamentos de Lourenço se enquadram perfeitamente dentro do catálogo freudiano que descreve essa condição. Ali estão o apego ao dinheiro, a ambivalência ligada às questões de sujeira e limpeza, de ordem e desordem, o ódio e o amor, o erotismo anal, uma sexualidade vivida como suja, etc. Como diz Gabbard, ao interpretarmos um filme, podemos fazer uso do extenso arsenal teórico psicanalítico, utilizando-o de acordo com as problemáticas por ele postas em jogo.


Em "O Cheiro do Ralo", como vimos, o que de imediato se coloca é o referencial freudiano das pulsões parciais, no caso a pulsão anal, tal como descritas nas fases da evolução da libido. Por outro lado, se levarmos em conta que Lourenço está à procura de um pai, impõe-se a problemática edipiana e seus mecanismos constitutivos do psiquismo via identificação. Lourenço cria na fantasia um pai morto na guerra, do qual resgata fragmentos, como o olho e a perna.

É interessante que Lourenço imagine ter perdido o pai numa guerra que o destroçou fisicamente, pois ai, mais uma vez retorna a agressividade anal, a destrutividade vingativa contra aquele que o abandonou. Poderíamos ainda apelar para o instrumental kleiniano e falarmos de um mundo interno composto de objetos parciais ou objetos destruídos, próprios da fase esquizo-paranóide, onde o objeto total não se constituiu.


O próprio ambiente de trabalhos de Lourenço – o amontoado de objetos repetitivos, velhos, quebrados, antiquados – remeteria a este estado mental, representaria um ego formado por objetos parciais ou destruídos, com os quais não consegue se estruturar adequadamente como sujeito, o que o impossibilita de estabelecer relações objetais satisfatórias.

Lourenço tem contato apenas com objetos parciais, como a bunda da garçonete, o olho e a perna de seu suposto pai. É como se Lourenço oscilasse entre a persecutoriedade dos objetos bizarros e destruídos da fase esquizo-paranóide, e a nostalgia de um olhar paterno que o libertasse da especularidade da relação narcísica com a mãe. Em vão procura construir para si uma história, daí seu ódio por aqueles que trazem histórias incrustadas nos objetos que precisam vender. Com seus permanentes ataques sádicos, Lourenço parece querer provocar uma vingança, desejada como a punição merecida por sua agressividade. E é o que termina por acontecer, quando ele finalmente se aproximava de uma relação mais total, mais completa com a garçonete.

O universo mental descrito em "O cheiro do ralo" lembra o filme "O Homem do Prego" ("The Pawnbroker"), de 1964, dirigido por Sidney Lumet e interpretado por Rod Steiger. Ali o responsável pela casa de penhores é um judeu sobrevivente dos campos de concentração. Tal como Lourenço, espezinha e humilha os coitados que a ele recorrem. Aqui a atitude sádica do dono do estabelecimento decorre dos traumas vividos nos campos de concentração.

Os traumas de Lourenço, responsáveis por sua conduta, são apenas entrevistos e construídos hipoteticamente.


A psicanálise continua influenciando muitos diretores e roteiristas. Se no inicio, sua presença era muito evidente e direta, como nos filmes de Buñuel e Hitchcock, hoje em dia ela se manifesta de forma mais sutil, mais indireta, mais sofisticada, como nos roteiros de Woody Allen, Peter Greenaway ou de Charlie Kaufman. Digamos que "O Cheiro do Ralo" está mais próximo dos primeiros do que dos segundos, daí seu sabor um tanto ingênuo ou anacrônico.

1 Comments:

Blogger Fabio Rocha said...

Belíssimo texto. Vou publicar no meu blog com link pra cá, ok? Abraços

2:46 AM  

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