Livre_expressao

segunda-feira, fevereiro 09, 2015

MEMÓRIAS DA VIZINHA DO ESTÁDIO


“Há muito tempo eu vivi calada, mas agora resolvi falar…”.

Sou moradora do bairro da Pompeia, em SP. Bairro tradicional de colonização italiana, bem localizado, com fácil acesso a parques, shoppings, metrô, teatro, restaurante etc etc etc. Bairro, inclusive, que sedia o também tradicional estádio do Palestra Itália, agora chamado de Allianz Parque.

Nasci neste bairro, cresci frequentando os bailes infantis de carnaval do clube. Minha festa de formatura foi lá também. Na adolescência assisti a legendários shows de rock neste estádio, e recentemente vi de perto meu Beatle favorito, lá também.
O estádio do Palmeiras faz parte da minha história.

Que pena que não são só belas referências que ele me traz. Na verdade, estas são a minoria.
Dei azar de morar ao lado de um estádio em um país onde a estatística de morte e violência no futebol é uma das maiores do mundo. Sim, do mundo.

Da minha janela já vi todo tipo de violência que você pode imaginar. Brigas de torcida. Brigas entre torcedores do mesmo time. Brigas entre a polícia e os torcedores. Brigas entre gente que estava passando na frente da sede da torcida organizada. Briga disso, briga daquilo, briga briga briga.

Vi cenas horríveis, inacreditáveis. Tenho náuseas de lembrar.
Vejo, ainda da janela de casa, torcedores chegarem escoltados, com “cantos e rimas” que exaltam explicitamente discursos de ódio e estupidez.

Sinto pena de tamanha miséria. E sinto muita raiva também. Muita.

Parece que tudo isso é normal. Sim, isso é tratado como normal. Em dias que antecedem os jogos, as pessoas me dizem “Nossa, amanhã vai ser difícil lá no seu bairro, hein?” “Está preparada para a bagunça que vai ser?” (Bagunça=violência, ok?).

Uma vez, cedi minha casa para uma festa, um chá de bebê de uma amiga. Aquele clima “fofo”, pacotes de fraldas, mamadeiras e chupetas. Era dia de jogo. Palmeiras e Santos. A polícia e a torcida entraram em confronto. Trocaram tiros. Na porta da minha casa. Os convidados do chá de bebê se jogaram no chão da sala, com medo. Eu também. Arrisco a dizer que fui a primeira a deitar no chão e gritar “Protejam-se”. Exagero ou não, o clima estava tenso, e estragou a festa, claro. Quem consegue falar de conjunto pagão, mijõezinhos, cotonetes e Hipoglós depois de um tiroteio?

É assim. No dia seguinte, vida normal. Talvez eu tenha lido na manchete que duas ou três pessoas ficaram feridas, ou até que conseguiram prender dois ou três vândalos. Grande coisa, hein? Dois ou três? E você jura que a confusão foi causada por duas ou três pessoas? Ou que a polícia não conseguiu identificar os outros?

Não... a confusão foi causada por uma cultura presente neste país, em vários campos da sociedade, que é a cultura da impunidade. A triste, deprimente, revoltante, cultura da impunidade. Uma palhaçada, que honestamente não tem graça alguma. Piada de mau gosto.
Ontem teve um clássico aqui no bairro. Eu, na verdade, acho clássico uma palavra bem pouco apropriada para a violência instalada em um jogo do Palmeiras e do Corinthians. Na teoria, uma beleza, dois grandes times, rivais desde sempre, se enfrentam mais uma vez. Na prática, um clima pesado desde o dia anterior. Encontros marcados pela internet, hora certa para brigar. Pessoas que saem de casa somente e para exercer sua agressividade destrutiva predatória. A polícia, tensa. A televisão sedenta por sangue. Helicópteros, camburões, tropas de choque, gás lacrimogênio, uns tantos correndo, uns outros caídos, sangrando, quebra-quebra, a rua da minha casa transformada em cenas de uma guerra particular.

Na imprensa leio que, depois da briga de ontem cinco palmeirenses serão vetados de ir a jogos em estádio. Uau! Não sei o que me impressiona mais: a notícia de que alguém foi punido (finalmente), o número ridículo de pessoas responsabilizadas, ou a piada que é a punição. Não preciso explicar porquê. Você entendeu. E acredito que também achou “tudo isso uma grande piada e um tanto quanto perigosa”.

Pois na mesma matéria, li que um dos cinco azarados, foi punido porque “portava dez barras de ferro e cinco cabos de enxada quando se dirigia à sede da Mancha Alviverde”. Está bom ou precisa mais?
A questão é que a mídia fala e mostra a desgraceira que é a violência causada por causa do futebol, o vandalismo absoluto que tira do cidadão comum o direito de ir e vir, e no meu caso, por causa do gás lacrimogênio, até mesmo a liberdade de abrir a janela num dia no verão. Afinal, quem se importa?

É isso, é aí que eu quero chegar, quem se importa??? Porque me parece que a violência instaurada e legitimada dentro, e fora, dos estádios de futebol, não é de fato problema de ninguém. É assim, todo mundo já sabe que “vai ser a maior bagunça”, e nada muda.
Isso para não citar o número gigante de pessoas que se acumulam nos arredores dos estádios que além da violência física e moral, trazem lixo, muito lixo pras nossas ruas, mijam nas portas das nossas casas, param os carros na frente das nossas garagens, e sentem-se protegidos pelo sentimento de serem parte da massa. São selvagens.

E apesar do meu desabafo, sei que estou falando meio que sozinha. Mas um pouco aqui, e um pouco lá, encontro forças em discursos e lutas que me mostram que o mundo não está tão ao contrário assim, que há aqueles que ainda acreditam que isso tudo é absurdo, e que há de se fazer alguma coisa. Algum dia, quem sabe. Por enquanto, teimo em gritar sozinha, daqui da janela, sem antes esconder o rosto, porque, claro, eu também tenho medo.

Ariadne Catanzaro