Livre_expressao

quinta-feira, maio 28, 2020

Quarentena

Como você tem passado a quarentena?
Será que temos todos algo em comum? Será que você se sente sozinha em alguns momentos, independente em outros, acha que está bebendo demais ou assistindo TV demais, ou postando qualquer coisa no Instagram?
A questão é que a quarentena é quase uma janelinha na casa do vizinho, onde podemos ter a ideia de que a vida do outro não é tão interessante assim, ou é muito mais instigante do que parecia.
O que ouvem os psicólogos em seus consultórios virtuais? Sempre as mesmas queixas e as mesmas descrições?
Aqui a vida vai bem. Às vezes eu me olho no espelho e acho que envelheci ou engordei. Tiro com pinça alguns fios de cabelo brancos, e de vez em quando até passo maquiagem para ficar bem no zoom.
Choro baixinho de vez em quando, mas tem vezes que abro o berreiro, de verdade, de soluçar.
Você também?
Trabalho com a cara no computador. Levanto para fazer almoço. Às vezes frito um ovo, porque só dá tempo para isso, mas tem dias em que consigo fazer pratos tão lindos e coloridos, que faço questão de postar nas redes sociais e esperar as curtidas e comentários.
Gostaria de chamar amigos para uma happy hour. Aí lembro-me que agora fazemos isso online. Então, mando uma mensagem no grupo de whatsapp, mas incrivelmente a maioria deles está ocupada com outros compromissos. Preciso marcar com antecedência.
Fiz novos amigos. Alguns eu nem conheço do jeito que a gente costumava conhecer antigamente, pessoalmente. Por exemplo, a dona da padaria de onde faço pedidos delivery. Não sei como é o rosto dela, mas a gente se fala quase todo dia, e ela, além de me mandar bilhetes fofos com as entregas, me chama pela primeira sílaba do meu nome nas mensagens de whatsapp. Na primeira vez achei estranho, mas agora acho justo, afinal falo mais com ela do que com minha mãe.
Vi no instagram que isso é normal. É o novo normal. Entregas que acompanham bilhetes fofos, com mensagem de encorajamento e motivação.
É disso que a gente precisa, né? É? Eu gosto dos bilhetes.
Também descobri um novo hortifrúti, com produtos fresquinhos entregues em casa dois dias depois do pedido. Isso me fez aprender a planejar minha geladeira. Foi fácil.
E as aulas online? Eu fico vendo tantos pais reclamarem de ter que ajudar seus filhos com o conteúdo da escola. Pois é, está aí um desafio. Quem gosta daquela tarefa que remete à professora rígida e inflexível da terceira série? Toda vez em que preciso ensinar matemática, eu fico brava. Falta-me a paciência, e principalmente, o conhecimento. Quem falou que eu entendo de equações? Frações? Quem achou que eu realmente tinha aprendido as tabuadas? Enganei a professora da terceira série, mas tenho que lidar com a verdade escancarada na minha frente hoje “Você nunca decorou a tabuada do 7”. Não, nunca, é verdade, me perdoa, me perdoa. Isso acaba virando um berro de “Vai prestar atenção na aula online, e use o google quando precisar. Eu estou ocupada agora.” Mentira. Eu não sei mesmo.
Aí resolvi então fazer uma lista de objetivos. Já que estou em casa, vou fazer coisas que sempre quis fazer, mas não tinha tempo. Você também fez uma lista de objetivos?
Eu pensei em emagrecer. Coincidentemente, as mulheres que eu conheço estão sempre falando em emagrecer. Seja lá porque estão gorduchas mesmo, porque viram na revista (na internet, na TV...) um modelo de corpo diferente do delas, porque estão exagerando nos bolos do café da tarde da quarentena, seja lá porquê, mulheres sempre falam em emagrecer. Eu também falo em emagrecer. Penso, na verdade. Falo pouco, porque tenho vergonha de ter engordado.
Fiz uma consulta online com uma nutricionista. Foi melhor do que presencial, sabia? Taí uma coisa que funciona mais online. Não tem balança, não tem aquele aparelhinho que mede a gordura, só tem aquela conversa maravilhosa sobre comida. Sobre substituições de alimentos. Funcionou, recomendo.
Tem aulas de yoga, aulas de dança, aulas de zumba, de dança do ventre, de jazz, do-que-você-quiser online. Basta saber: e aí, tem tempo e disposição para fazer? No meu caso, só virou uma demanda a mais, além do trabalho com a cara no computador, o fogão, o mercado, a padaria, a aula de matemática, a reeducação alimentar e as postagens de selfie no instagram. Comecei a achar que eu não estava dando conta. De nada. Chorei tudo de novo.
E assim tenho lidado comigo mesma. Pensa que é fácil? De jeito nenhum. Em casa a gente tem mais tempo de se cobrar. Ai meu deus, quem consegue arrumar mais tempo prá cobrança?
E como hoje é quinta feira, eu resolvi revirar uma caixa de fotografias impressas, para postar o meu #TBT. Foi como uma cápsula do tempo me mostrando que eu já fui jovem, magra, confusa, ruiva, loira. Que já tive vários namorados. Que já chorei em outros momentos. Chorei bastante, viu? Que já me senti sem chão. Que já me senti linda. Que já ultrapassei situações inusitadas. Que até violão eu já aprendi a tocar! Já fiz natação, teatro, fotografia e que viajei muito. Que minha vida é longa, e não se resume à quarentena e nem às memórias das aulas de matemática. Eu constatei que a vida é um sopro, mesmo sendo óbvio falar. Que eu sinto falta dos meus pais, dos meus amigos, e da minha mesa cheia de canetas coloridas no trabalho. Do álcool gel que ficava ao lado meu computador, que tinha cheiro de perfume.
Eu não sei quanto tempo a quarentena vai demorar para passar. Nem chama mais quarentena. Tem um nome mais triste agora: distanciamento social. Quem imaginou que teríamos que nos distanciar socialmente? Que as crianças passariam a ser um risco ao visitar os avós? Dá para imaginar algo mais triste? Não dá. Não pensamos nisso. Não pensamos em nada disso.
E hoje eu só sinto vontade de descrever um pouquinho do que é tudo isso. Mas vendo a vida na perspectiva da minha caixa de fotos impressas, eu consigo ter a certeza de que isso também vai passar. Eu acho que vai passar. Acho que em uma das fotos que vi na minha caixa de memórias, eu parecia achar que aquela fase era eterna. Ah, se eu pudesse falar com aquela “eu”.
Então, por enquanto, vou cozinhando e comendo quinua com brócolis, porque tem menos calorias. Porém, vou te confessar, que exagero no vinho, que é bem calórico. Mas, ah, não é todo dia. A vida é um sopro. De vez em quando vamos chorar mesmo, mas o importante é não deixarmos de fazer planos. Nem que seja para o bem estar do dia seguinte.
Isso também vai passar e vai entrar para a caixa de fotografias impressas, ou destaques dos stories do instagram. Mas também vai passar.