Livre_expressao

terça-feira, janeiro 04, 2022

In Memorian

Só escreve, ele disse a ela.
E a moça abaixou a cabeça e começou a arranhar a ponta do lápis sobre o papel amarelado.

Descrevendo então sua caminhada, lembrou das dores das quais havia se livrado. Das tardes em que foi trabalhar com choro no cantinho do olho, torcendo para não piscar, senão a lágrima escorria e todo mundo percebia.

Das noites em que secou uma garrafa de vinho branco, chorou sozinha no chão da sala e vomitou antes de dormir atordoada pela tontura dos pensamentos confusos.
Dos domingos sem sentido, silenciosos e vazios. Das manhãs demoradas, que viravam tarde, que viravam noite, e o pijama grudado na sua pele, como plástico velho que não sai mais.
Das séries de TV que demoravam para terminar, ou que permaneciam inacabadas, pausadas para sempre na metade do mesmo episódio.
Dos livros que pegou emprestado, e nunca abriu. Das xícaras sujas de café que passavam dias no mesmo canto da sala.
Dos pensamentos que a acompanhavam antes de dormir e logo ao acordar.
Do jejum de dias, da roupas ficando largas, dos horários de almoço sem sabor, da garrafinha de água sempre vazia ao lado do computador, que teimava em mostrar slides que pouco interessavam.
A moça pausou. Respirou fundo e segurou o ar por alguns segundos enquanto se dava conta de que já parecia outra vida. De que já havia morrido de tudo aquilo ali.
De que aquela dor já estava enterrada. Cremada. Jazia longe dali. Sabe-se lá onde, numa gaveta da memória. Daquelas que a gente até esquece de levar florzinha para homenagear. Não estava mais viva. A dor. Era memória.
Deu meio sorriso.
Deu outro sentido à solidão.
"Vou criar novas memórias", disse a ele.
"E vai começar por onde?"
Ela também não sabia. "Não tenho como planejar." A moça dobrou o papel. "Tem outra folha?"
Ganhou um caderno branco sem linhas. Pensou por alguns segundos. "Como se escreve ressignificar?" Ele sorriu. Ela mesmo respondeu, levantando-se e pondo-se ereta, pronta mais uma vez.

Ariadne Catanzaro