Livre_expressao

sábado, outubro 21, 2006

A gente se vê

Levantei do sofá. Caminhei até a vitrola e aumentei o volume.
Fui até a geladeira, olhei calmamente. Para beber, só água gelada. Abri o armário e peguei um uísque. Cowboy. Enchi o copo e virei num gole.
Olhei ainda para fora da janela, que estava entreaberta. Pensei durante alguns segundos enquanto sentia um calor infernal no meu peito e garganta. Senti uma rápida tontura etílica. Deixei o copo em cima da mesa. A toalha. Lembrei de pegar a toalha colorida em cima de mesa. Tinha sido presente da minha avó. Tirei a toalha, chacoalhei na janela, dobrei mal dobrada e coloquei na sacola em cima do sofá. Você me olhava impaciente, sentado na poltrona azul.
- O disco do Pixinguinha é meu.
- Pode levar.
- E o livro do Borges?
- Ainda não terminei de ler.
- Depois me manda por sedex.
Contrariada, segui para o quarto.
Acendi a luz, já que a janela ainda estava fechada. Peguei meu travesseiro. Tirei a fronha, pois esta não era minha. Olhei para a porta para checar se você não estava vindo e dei uma rápida cheirada na fronha. Meu coração apertou. Joguei a fronha em cima da cama e voltei para a cozinha. Mais um copo de uísque cowboy ingerido em um único gole. A tontura, o calor, a vontade de quase chorar.
- Então é isso.
- É isso.
Peguei minha sacola, meu disco do Pixinguinha e desci as escadas já um pouco bêbada.
Abri o portão e não olhei para trás.
E com o desgosto de quem é jogado longe, sem casaco, num inverno da Patagônia, de longe ainda te escutei gritando:
- A gente se vê.
Cara de pau!

Ariadne Catanzaro

quarta-feira, outubro 18, 2006

De olhos bem abertos

Ela fingiu que não percebeu que eu estava olhando.
Mas eu sei que ela percebeu.
Contunuei a olhar fixamente. Só para incomodar.
Mentira. Eu não conseguia tirar os olhos dela. Nem se eu quisesse. Não conseguia.
Eu que nem sonhava mais quando dormia tarde.
Eu que insistia em olhar para ela.
Ela que insistia em não reparar.
Acendi um cigarro. E fingi que nem me importava.
Desci a rua, a sonhar de olhos abertos.

segunda-feira, outubro 16, 2006

UMAS E OUTRAS

Uma era lasciva
De sorriso fácil
Nunca se embaraçava.
Usava salto e decotes generosos.
Acordava tarde e só saía da cama depois de se espreguiçar.

A outra era pontual.
Vestido discreto, sorriso secreto.
Quase não se percebia que ela estava lá.
Falava baixo e se chateava sem reclamar.

Uma chorava alto e em bom tom.
Mal se preocupava com o batom
Vermelho
Nos lábios grossos e carnudos.
Se opunha quando devia acatar
Acatava quando devia levantar.
Ia embora sem se despedir.
Assim mesmo, sem nem olhar pra trás.

A outra, delicadeza sutil.
Quando dançava, era com movimentos pequenos
Mudava de assunto com facilidade
Saía com elegância das conversas impróprias
Lia Shakespeare antes de dormir.
Nietzsche ao acordar.
Sorria ao se despedir
E não olhava pra trás.

Encontraram-se num café.
Uma chegou de táxi
A outra pelo elevador.
Uma pediu chopp
A outra, vinho.
Sentaram em mesas diferentes.
Ficaram em silêncio.
Uma atendeu o celular.
A outra olhou pra porta de entrada.

O homem alto entrou e sorriu.
As duas se alfinetaram com o olhar.
O homem tentou fugir.
Uma gritou seu nome
A outra espatifou o copo no chão.
E o homem ali, não era homem, era indecisão.
A pensar como que ele foi parar ali.

Ariadne Catanzaro

Simone

Ai, como apertava o sapato.
Dava três passos e parava. Encostava-se num muro. Colocava discretamente o calcanhar para fora. Este respirava e latejava um pouquinho, e novamente era sufocado em cima do salto fino. Mais três passos e o mesmo ritual.


- Porra Simone, não vamos chegar nunca desse jeito.
- Vendeu o carro porque quis!
Puta que pariu! Sabia que uma hora ela ia me jogar isso na cara.


- Simone, tira logo essa porra de sapato e se apressa.
- Porra de sapato?? Porra de sapato?? Sabe quanto custou essa “porra de sapato”???
- Simoneeeeeeeeeeeee!!! Eu não tenho o dia inteiro!!
Ela baixou o volume da voz.


- Tá doendo.

Estendi a mão para ela se apoiar em mim.
Conseguimos avançar 5 metros. Ela parou de novo.


- Simone, falta pouco.
Ela me olhou. Olhar fixo. Olhos negros e olhar fixo.
- Não quero ir.
Sabia que tinha alguma coisa. Não era só o sapato que estava apertando.
- Como???
- Não quero ir.
- Mas foi você que insistiu nessa porra de história!! Teus pais estão lá esperando.
- Mas não quero mais.
- Como não quer mais?? Não quer mais o que, exatamente?
- Não quero mais nada disso. Nem casamento, nem cerimônia, nem juiz, nem você acordando do meu lado de cara amassada! Nem estes sapatos eu quero mais!!


Atirou longe o scarpin.

- Ce tá louca?
- Não quero! Pronto, falei. Não queeeeeeero!!!
- Simone?!
- Chega, Roberto.
- Mas você...
-Tá, mas mudei de idéia. Não quero mais.
- O que ta acontecendo, Simone?
- Ai Roberto...você é tão...tão chato... tão mal humorado... tão...tão duro! Por que você foi vender a merda do carro bem antes do casamento?
- Simone, não viaja! Que papo é esse? Eu vendi a porra do carro pra pagar a porra do juiz para a porra do casamento!!


Ela olhou para o horizonte. Sei lá que porra de horizonte tinha pra olhar, mas olhou longe com cara de exausta.

- Avisa meus pais que depois eu ligo para eles.
- Quê???


Atravessou a rua correndo, descalça, para dar tempo de pegar o primeiro ônibus que vinha vindo. Eu não vi para onde ia o ônibus, e ela certamente também não viu.

Me deixou à rua deserta. Eu fiquei pensando ainda por uns tantos segundos. Minutos, talvez. Horas, ou anos.

Recolhi os sapatos, como na porra de um conto de fadas.
Olhei o horizonte. Como é triste o horizonte visto de uma cidade grande.


Ariadne Catanzaro

Tons Pastéis

Ele me olhou com olhar de tons pastéis.
Pude sentir seu sabor.
E de sobremesa
me deu um beijo de cerveja.


Ariadne Catanzaro

domingo, outubro 15, 2006

Faxina

Em passos lentos, demorei para chegar.
Já era tarde, mas não tão tarde assim. Cheguei com o corpo molhado, pois havia pego um pouco de chuva, e claro, não tinha guarda-chuva na bolsa.
Subi a escada, vinte e tantos degraus.
Coloquei a chave na fechadura e não daria para descrever a sensação de virar a chave e a porta se abrir. Aquele cheiro, aquele gosto e aquela sensação indescritível de estar em casa.
O sol estava entrando na janela, tinha uma luz amarelada de fim de tarde, fazendo uma sombra bonita no chão.
As plantas já estavam quase mortas, mas nada que minha atenção e dedicação não resolvessem. Tinha muita poeira nos móveis e alguns alimentos estragados na geladeira.
Recomeçar.
Tirar o pó, regar as plantas e jogar fora o que não presta mais.
Recomecei.
Doeu um pouco; logo passou.
E não foi tão rápido assim. Com uma calma que disfarçava uma certa ansiedade, fiz tudo devagar. Passo a passo, como se diz por aí.
Como um pós-operatório, prestei atenção em cada gesto, em cada ato.
A casa foi ficando de novo com a minha cara.
Por último acendi um incenso, liguei o rádio, sentei para ler. Apesar de não conseguir prestar atenção em uma só palavra impressa, senti-me relaxada e pronta. De novo.
O telefone logo tocou, escutei atenta às palavras do outro lado da linha.
Desliguei.
Levantei.
Peguei a bolsa, coloquei o sapato, passei batom e saí. Mas eu sabia desta vez, que minha casa estava lá, em bom estado, me esperando para me acolher assim que eu voltasse. De novo. Tranquei a porta depois de constatar por duas vezes que lá também trancada estava minha alma e meus sentimentos, depois não olhei para trás.
Nesse ramo não é bom deixar clientes esperando.
Ariadne Catanzaro