Livre_expressao

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Ela

Ela não tinha me visto. E olha que eu estava de calça amarela.
Ela passou do meu lado olhando pro outro.
Eu ainda dei uma tossida numa tentativa estúpida, mas ela não me notou, não me anotou e não me adotou.
Ela foi descendo a rua. Eu fui atrás. Ela dobrou a esquina. Continuei atrás. Uns sete passos de distância.
Ela entrou no supermercado. Eu sentei num boteco que tinha na frente. Pedi uma água com gás. Estava um calor desesperador.
Ela demorou mais ou menos uns doze minutos e saiu com três sacolas. Ajeitou os óculos escuros e atravessou a rua. Veio em minha direção, olhando para a outra.

Eu tornei a tossir, ela parou, descansou as sacolas no chão, prendeu o cabelo com uma fivela em formato de peixe. Tornou a pegar as sacolas e seguiu. Sem me notar, anotar ou adotar.
Continuei atrás dela.

Ela entrou no prédio sem dar bom dia ao porteiro. Eu sentei na calçada. Tirei um papel do bolso, um lápis meio sem ponta e escrevi umas tantas palavras soltas que se poderia chamar de poesia depois da quinta cerveja.
Fiquei lá parado por uns quarenta minutos.
Ela apareceu na janela do sétimo andar. Estendeu depois de chacoalhar a toalha cor-de-rosa. Tinha os cabelos soltos e molhados.
Dezessete minutos depois apareceu novamente na rua. Vestido verde claro, sandálias de salto alto, com a bolsa da mesma cor.
Atravessou a rua. Passou por mim. Fiquei com medo de parecer tuberculoso e desta vez não tossi. Bocejei. Não foi voluntário, mas bocejei. Ela sentou num banco da praça e tirou um espelho da bolsa. Ajeitou o cabelo, tirou um batom sem cor e contornou os lábios.
O carro prata parou na frente dela. Ela sorriu, levantou e andou até a janela. Ficaram conversando com a janela aberta e a porta fechada durante uns quatro minutos.

O carro prata abriu a porta. Antes dela entrar, me olhou fixamente. Eu tremi. Ela tirou um envelope da carteira e olhando para mim deixou o envelope sobre o banco que estava sentada. Entrou no carro prata, fechou a porta e sumiu no meio dos outros carros pratas, pretos, verdes e vermelhos.

Eu ainda fiquei alguns sete minutos parado, com o coração disparado. Depois de constatar que ali estava vazio, apesar das buzinas e sirenes, levantei, acendi um cigarro, virei as costas para o banco, para a praça, o prédio e os sapatos que combinavam com a bolsa. Fui na direção contrária do carro prata. Desci a rua e dobrei a esquina. Sumi entre outras calças amarelas, pretas, verdes e vermelhas.

Ariadne Catanzaro

sábado, fevereiro 03, 2007

EX NAMORADO

Ele passou por mim na rua. Eu estava saindo do serviço, cheia de sacolas na mão esquerda, a bolsa no ombro, a chave do carro na mão direita, uma caneta prendendo o cabelo, olheiras de cansaço, o casaco de lã pendurado num braço e uma pasta (maldita mania de levar relatórios para casa) presa no outro. Ele sorriu.
_ Uau, você!
_ Hã...sorri também... é, eu. Tudo bem?
Meu coração disparado.
_ Meu Deus, quanto tempo... o que... uns três anos?
_ Ou até mais. – desviei o olhar.
_ Uau, quanto tempo. – Me olhava fixo e sorria continuamente.
_ Então... tudo bem?
_ Sim, tudo bem. E você? E sua mãe? Vocês ainda moram no mesmo lugar?
_ É, moramos. Você ainda toca bateria?
_ Ahahaha... isso faz muito tempo mesmo. Não, não toco mais.
Eu mal conseguia encara-lo. Que merda, bem hoje que eu estou toda bagunçada!
_ Então tá bom, manda um abraço para todos na sua casa. – tentei inutilmente terminar o assunto. Mas ele, com aquele sorriso maldito, ainda insistia.
_ Claro, mando sim. Mas fala aí, o que tem feito?
_ É... estou trabalhando... aqui... sou secretária de um escritório de contabilidade.
_ Secretária? Bom, bom. Eu sou advogado.
_ Ah, já está exercendo a profissão?
_ Sim, estou indo bem.
Dava para perceber mesmo pelo terno de linho azul marinho.
_ Que bom, fico feliz. Bom, agora...
_ Vamos tomar um café qualquer dia.

Pára tudo! Essa insistência dele já era demais. Será que eu não estava tão mal assim? Que boba eu, fico me achando feia, atrapalhada... e ele aqui, lindo, na minha frente, insistindo em falar comigo, interessado, e até um convite. Sorri e olhei em seus olhos.

_ Café? Ou vamos tomar um vinho?
Ele riu. Gargalhou. Me destruiu.
_ Foi bom, muito bom te ver. – Me deu um beijo no rosto – Você continua engraçada.

Engraçada é a puta que pariu, pensei. Não falei. Sorri e olhei para meu carro.
_ Então tá. Tchau. – Saí ferida. Devastada. Torci o salto na calçada. Ele gritou:
_ Tudo bem?
Fiz que sim com a cabeça e abri o carro. Engraçada é a puta que pariu. Dei partida no carro e sumi no asfalto.


Ariadne Catanzaro